Beth & Heinz Klein

(Moto)viagens

Diário de bordo -  Américas 2011: Venezuela / Bolivar (II)

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E voltando a falar de indígenas, nosso guia, o barqueiro e demais ajudantes eram todos indígenas, da tribo Kamarocoto, um subgrupo dos Pemón. Mas o guia falava, além de castelhano, um inglês muito bom, que certamente atendeu a todas as necessidades dos viajantes que precisavam dessa língua para se comunicar. Mas entre eles eles só falavam sua língua - riam muito! Se era de nós nunca saberemos...

A viagem começou tranquila até que chega mos aos Rápidos de Mayupa. Aqui tivemos que descer e caminhar pela margem do rio até acima da corredeira. Não sabemos se essa corredeira é realmente muito difícil ou se eles forçam um pouco a barra: há uma lojinha de souvenirs à beira da trilha que sobe o rio. Ela está lá porque realmente é quase inevitável fazer essa caminhada ou a caminhada existe para ajudar a lojinha?

Embarcamos novamente a montante da corredeira e seguimos viagem. Ainda tivemos que desembarcar mais uma vez em outra corredeira, e depois disso seguimos até o Pozo de la Felicidad. É uma pequena cachoeira que forma um poço adequado para banho, e que nas circunstâncias também ofereceu abrigo para sentarmos e comermos o lanche trazido na canoa a título de almoço.

Mais navegação. até a Isla Orquidea, que tem uma bonita praia onde fizemos nova parada curta para esticar as pernas e curtir a paisagem. Esta descrição não dá uma idéia completa do que é essa subida do rio: ele´é (ou estava nesta época) bastante raso, e através da água marron mas translúcida é possível ver as pedras passando muito perto do barco. Na realidade há diversos momentos em que o barqueiro tem que levantar o motor de popa para passar por corredeiras e em outras situações a gente sente a canoa raspando o fundo nas pedras.

E há diversos momentos em que é extremamente importante manter as mãos dentro do barco: daria para machucar seriamente um ou mais dedos prensados contra as rochas.

Finalmente, depois de aproximadamente quatro horas de "rafting com mão invertida", chegamos a nosso destino, a Isla el Ratón, ponto de partida da trilha que conduz à base do Salto Angel.

18/04/2011 - Segunda-feira: Ciudad Bolívar - Canaima

Agora estamos escrevendo depois de voltar de Canaima. Nesse dia conseguimos tomar um café da manhã mais parecido com o nosso: há uma padaria ao lado do hotel onde conseguimos comer um misto quente e um queijo quente com suco de laranja e café (de máquina espresso) com leite. Queríamos ainda comer um pão doce que tinha boa cara, mas o pão de forma deles aqui é imenso, e eles também não foram nem um pouco econômicos com o recheio. Quando conseguimos acabar com os sanduíches não cabia mais nada.

Aliás, o queijo quente estava muito bom: fatias de queijo amarelo com uma fatia grossa de queijo branco no meio.

Canaima é um vilarejo indígena no meio de um parque nacional com o mesmo nome, que praticamente só pode ser atingido por via áerea. Deve haver alguma estrada, mas se existir é coisa para veículos 4x4.

Da padaria fomos direto para o aeroporto - a bagagem já estava junto. E no aeroporto descobrimos em detalhes como funciona essa história de ir para Canaima: os vôos são totalmente aleatórios e por demanda. Conforme o movimento, eles vão enchendo aviões e despachando - você pode viajar num Cessna de cinco lugares ou num aviãozinho maior de 19 lugares, dependo totalmente da sorte. Mas nada maior que isso.

E, claro, isso significa que a gente depende demais do pessoal da operadora de turismo, pois só eles conseguem entender quem vai quando para a fila de embarque. E essa fila também é única: só lá na sala de embarque uma funcionária vai chamando nomes e encaminhando para o avião. Tivemos sorte e fomos embarcados num dos aviões maiorzinhos.

Na chegada a Camaina começamos a perceber que a mudança de programação de nosso grupo não era um boa idéia: normalmente as excursões ao Salto Angel são de três dias, sendo o primeiro dia para a viagem a Canaima e passeios às cachoeiras próximas à vila; no segundo dia vai-se ao Salto Angel (é uma viagem de canoa de aproximadamente quatro horas) e dorme-se no acampamento próximo ao salto, e no terceiro dia retorna-se para Canaima e depois para Ciudad Bolivar.

Para nosso grupo a Bernal Tours inverteu essa programação, e fomos diretamente do aeroporto para o Salto Angel. Isso causou um problema logo no aeroporto: tivemos que trocar de roupa (vestir maiôs, substituir tênis por calçado mais adequado para se molhar) ali mesmo. E alguns ainda tiveram que rearranjar a bagagem, porque a ídéia era levar somente o básico para esse pernoite, deixando o resto aos cuidados da operadora, que levaria a bagagem para o acampamento em Canaima.

Bem, fizemos os preparativos e seguimos num caminhão até o ponto onde embarcamos nas canoas (curiaras na língua indígena) que nos levariam rio acima - na realidade dois rios: primeiro o Carrao e depois o Churún. Essas canoas são de madeira, levam entre oito e dez pessoas, e têm um belo motor de popa de quase 50 HP - muito necessários para encarar as corredeiras do rio.

O rio é cheio de pedras e corredeiras, e o grau de dificuldade, tanto para subir como para descer, varia conforme o volume de água. Quando ele está muito cheio é possível percorrê-lo completamente, em outras situações (a nossa) há uma ou duas corredeiras onde é preciso descer e subir a pé enquanto o barqueiro sobe a corredeira com a canoa vazia. Em situações mais extremas pode ser necessário empurrar o barco corredeira acima e no extremo (pico do verão) não é possível chegar ao salto Angel - o rio baixa o suficiente para impedir completamente a navegação.

Falando em verão lembramos de um detalhe curioso quando chegamos a Boa Vista: havíamos acabado de cruzar o Equador e estávamos a um par de graus de latitude norte. Aí resolvemos perguntar qual era a estação do ano e a resposta foi "verão". De um lado faz sentido: se em Belém e Manaus falam em inverno (estação das chuvas), acima do Equador deve ser o contrário. Mas ao mesmo tempo fica difícil aceitar que só porque andamos algumas centenas de quilômetros as estações se invertam.
E essa viagem nos proporciona outra oportunidade talvez única (para nós): ver uma quantidade imensa de tepuys. Tepuy é uma montanha de paredes quase verticais e cujo topo é praticamente plano (chamado de mesa). São formações impressionantes pela forma e pelo tamanho; um belo exemplo está no Brasil: o monte Roraima. Mas a maioria dos tepuys fica na Guiana e na Venezuela, e no Parque Nacional de Canaima é possível observar muitos deles.

Nosso guia disse que tepuy significa simplesmente montanha na sua língua, mas preferimos continuar falando em tepuys: essas montanhas são tão especiais e diferentes que merecem ter um nome também especial.
Aliás, por que ir ao Salto Angel? Porque é o mais alto salto do mundo, com 979 metros de altura, dos quais 807 de queda livre da água. E o nome nada tem a ver com anjos em espanhol: ele é uma homenagem ao aviador americano Jimmy Angel, que foi o primeiro a pousar um avião no alto do Auyantepuy - este é nome do tepuy de onde o salto despenca, aliás um dos grandes tepuy da região.

Conversando com um venezuelano que estava no mesmo acampamento ele disse que há saltos ainda mais altos na Venezuela, mas que não entram na classificação por não serem perenes: eles secam no verão. Aliás o próprio Salto Angel não chega a secar completamente, mas na época mais seca a água não chega ao chão: ela é dispersada pelo vento depois de algumas centenas de metros. Nessa época os indigenas o chamam de Saltito.

Quando chegamos a essa ilha veio a principal decepção com esse roteiro invertido: eram 15h30 e a caminhada até o poço do salto é de pelo menos uma hora, portanto entre caminhada e permanência lá são necessárias no mínimo duas horas e meia. Como já estamos (principalmente eu) um pouco lentos, certamente precisaríamos de mais de uma hora para fazer o percurso, e isso significaria retornar no escuro, com riscos apreciáveis. Fomos obrigados a ceder à argumentação do guia e permanecer no acampamento enquanto os outros seguiam para o salto.

O chato é que pelo programa normal isso não teria acontecido: teríamos chegado ao início da trilha mais ou menos às 14h, e teria havido tempo mais que suficiente para fazer a caminhada.

Bem, pelo menos restou o consolo de ter escolhido a operadora certa: ela é uma das duas operadoras que tem o acampamento rústico bem em frente ao salto, na Isla Ratonzito, permitindo uma vista maravilhosa do mesmo. E a fase da lua também criou uma situação muito especial: era lua cheia, o céu estava claro, e a luz era tão forte que era possível ver o salto à noite. Pena que não deu para fotografar, a cena era maravilhosa!

Ah, o acampamento rústico! É rústico para ninguém botar defeito. É uma grande choupana com teto de palha, sem paredes, onde são penduradas até umas vinte redes, suficientemente próximas para qualquer um chutar outro hóspede se se desequilibrar ao deitar ou sair da rede. E para completar as nossas estavam fixadas num caibro de madeira que estava solto, de modo que um movimento em qualquer uma das seis ou sete redes presas a esse caibro era transmitido às demais redes.

Nos dois banheiros havia vasos sanitários, mas a descarga era um balde de água tirada de um tonel na frente das portas,  com água do rio. Lavar as mãos ou escovar os dentes, só lá no rio (uns cinquenta metros afastado do acampamento por uma trilha não-plana) ou com a água de sua garrafa de água mineral. Claro que não há eletricidade, e se você tiver esquecido de seguir a enfática recomendação de levar lanterna ficará numa situação complicada, principalmente para ir ao banheiro durante a noite.

Vale a aventura, mas uma noite é mais que suficiente! A grande surpresa foi o jantar: frango assado no espeto acompanhado de pão, salada e arroz, bem temperados e muito bem arrumado em pratos individuais.

Ah, na volta ao acampamento principal uma venezuelana com quem conversamos fez um trocadilho que tentaremos reproduzir aqui (vamos ver...): ela perguntou se sabíamos que havíamos comido pollo enbarazado (frango grávido para quem não sabe). E a explicação diante de nossa cara de ponto de interrogação: o frango foi en vara asado (realmente eles colocam 3-4 frangos num espeto em pé em torno da fogueira) o que pronunciado rapidamente em espanhol soa como enbarazado.


19/04/2011 - Terça-feira: Canaima

O dia começou cedo: o guia queria que levantássemos às 6h para partir às 7h (programa de índio mesmo, apesar de que duvido que quiséssemos dormir mais). O café da manhã foi frutas, suco e laranja, ovos mexidos, arepas e pão com margarina e geléia e café com leite. Novamente ovos e arepas cuidadosamente arrumados em pratos. Realmente surpreendente. E surpreendente também foi a quantidade de cebola nos ovos mexidos: a dieta matinal venezuelana é meio complicada para nós - depois descobrimos que essa forma de preparação dos ovos faz parte do desayuno criollo.

Um venezuelano nos explicou que é realmente comum se comer muito e pesado no café da manhã, e a razão para isso é que em função de atividade profissional, falta de tempo e até mesmo falta de recursos financeiros impedem muitos venezuelanos de almoçar, tornando o desjejum e o jantar as duas grandes refeições do dia.

A volta não foi muito diferente da ida, apenas mais rápida (estávamos descendo o rio e só paramos para atravessar os Rápidos de Mayupa) e um pouco mais fácil de encarar as corredeiras.

Chegamos a Canaima perto da hora do almoço, e fizemos o deslocamento para o acampamento Bernal de lá, que fica na Ilha Anatoly: tivemos que descer da canoa (no rio Carrao), andar uns cinco minutos de caminhão e tomar outra canoa, agora na Laguna de Canaima. Esse trajeto é curtinho (uns dez minutos) mas muito bonito por passar em frente aos quatro saltos que formam a laguna.

Instalados no acampamento tivemos tempo para ir à praia em frente, que tem como destaque a vista do Salto Hacha, diretamente em frente à praia. Almoço, um pequeno descanso, e seguimos para visitar os saltos Sapo, Sapito e Hacha, passeio bonito e agradável, com belíssimas paisagens, parcialmente graças ao fato do Salto Sapo estar quase seco, o que nos permitiu passear sobre as pedras onde normalmente corre a água.

Dia agradável e, descontada a partida do acampamento rústico, sem grandes correrias. Ficamos apenas imaginando como deve ser passar um meio dia nesses acampamentos com chuva. Deve ser bem complicado!


20-21/04/2011 - Quarta e Quinta-feira: Canaima - Ciudad Bolivar

E nesse dia ficou evidente o terceiro problema com a 'compactação' do roteiro criada pela Bernal Tours nos dois primeiros dias: não tínhamos nada para fazer até 13h30, quando deveríamos partir de volta para Ciudad Bolivar.

Como estávamos numa ilha, dependíamos de barco para qualquer deslocamento, e o que foi oferecido nesse sentido foi um barco para nos levar até a vila de Canaima de manhã. Mas praticamente a única coisa que a vila oferece são lojas de souvenirs - muito longe de nossos interesses.

Ficamos então matando tempo no acampamento, e depois do almoço repetimos o caminho de segunda-feira, no sentido contrário. Tivemos sorte de sermos embarcados no primeiro avião que partiu, e chegando a Ciudad Bolivar nos hospedamos na pousada da família Bernal, lugar simples mas bem arrumado - pelo menos pudemos gozar uma cama confortável e ar condicionado idem.

No dia 21 ficamos praticamente o dia inteiro na pousada, lavando roupa, atualizando o site e planejando os passos seguintes. Já havíamos nos informado que no sábado não seria grande problema ir para Isla Margarita: a balsa estaria vazia e já haveria hotéis disponíveis pois parte dos turistas iniciariam o regresso nesse dia. Decidimos retornar ao plano original e tocar para lá.

Mas também tivemos uma experiência que não deixa de ser marcante num país sobre o qual nos advertem tanto sobre os riscos de roubo: ao sair do hotel para Canaima na segunda-feira, esquecemos o carregador de baterias numa tomada do quarto. Na quarta-feira, ao retornar, fomos ao hotel e o porteiro foi bastante solícito em procurar o carregador, informando inclusive que o quarto não havia sido alugado depois de nossa saída e nos levando até lá para ver se porventura ainda estava no quarto.

Ele não conseguiu contato com a arrumadeira, e pediu que retornássemos no dia seguinte, quando ele teria tido tempo de falar com ela. E no dia seguinte lá estava o carregador, com as duas baterias, a nossa espera. Ficamos nos perguntando em quantos hotéis brasileiros podemos contar com isso.
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