Beth & Heinz Klein

(Moto)viagens

Diário de bordo -  Américas 2011: Colômbia - Panamá

Próxima página
Página anterior
Próxima página
Página anterior
O dia começou com um diálogo curioso: acordamos ouvindo a voz de alguém, que pelo teor da conversa percebemos ser um Kuna, oferecendo cabombias, um molusco que cresce naquelas conchas espiraladas que vemos enfeitando aparadores de casas por aí, para o Roland. O alemão, com um espanhol ultra-estropiado, passou um senhor sermão no Kuna, argumentando que essa época é de preservação das cabombias (reprodução) e que o Kuna estava se prejudicando ao pescar o molusco.

Nesse dia o plano era nos deslocarmos para outras ilhas, e isso começou bem cedo, ainda enquanto tomávamos café.
15/05/2011 - Domingo: Mar do Caribe (primeiras horas)

Antes de mais nada, até alguns instantes após a partida ainda não havíamos percebido que o tal Fritz nem estava a bordo: Roland era o capitão do barco (contratado dois meses antes para isso) e Jose, um panamenho, era marinheiro e cozinheiro - aliás muito bom!

Durante toda a viagem nos divertimos com aquele gigante de mais de dois metros de altura se contorcendo para se mover pelo barco. Até que o Roland é ágil e flexível!

Nós, felizmente, havíamos reservado uma cabine com banheiro próprio e com espaço razoável para um barco daquele tamanho. Essa opção foi importantíssima porque o tal de Fritz é profundamente ganancioso, e só não pendura passageiros nos mastros porque não dá: no site do barco há uma esquema mostrando que dentro da cabine há uma mesa com assentos formando um "U" em torno dela, além da mesa no convés externo. Que dera! A tal mesa foi convertida numa 'camona' onde dormem três ou quatro pessoas uma ao lado da outra. No total éramos 15 passageiros: cinco pilotos de moto mais a Beth, e nove 'pedestres'. Para quatro desses passageiros havia dois banheiros - as duas cabines com banheiro privativo - e os demais onze tinham que compartilhar um banheiro.

Isso sem contar que com essa multidão a bordo não havia lugar para as mochilas, não havia mesa para todos nas refeições, enfim, era um senhor aperto. O tamanho do aperto fomos percebendo ao longo da viagem...

Partimos só com motor, o que não nos surpreendeu, mas quando saímos da baía de Cartagena a vela principal foi içada... e o motor continuou funcionando. Explicação: aquilo era uma viagem comercial, com início e fim definidos, e como os ventos não estavam bons o motor proporcionaria a velocidade necessária para atender ao cronograma. Que veleiro barulhento!

Começamos a tomar mais contato com o barco e seus passageiros, enquanto o Jose cuidava de preparar e servir o almoço. Do ponto de vista culinário foi uma viagem muito interessante, com pratos extremamente variados e muitas vezes surpreendentes, como no dia em que ganhamos panquecas com geléia ou açúcar e limão para jantar ou quando foi servida comida austríaca. Não podemos nos queixar dessa parte - só o peixe que o pessoal pescou e que foi comido no último dia é que não estava grande coisa, mas foi o que o Jose conseguiu fazer com a matéria prima disponível.

Além do australiano, três canadenses e nós, havia um cara com jeito de filipino, nacionalidade norueguesa e que morava nos EUA, um casal neozelandes, um suiço, um alemão e duas americanas e duas inglesas. Uma mistura e tanto...

Não havia muito o que fazer no barco, e com o aperto que aquilo estava nem um lugar minimamente decente para trabalhar no notebook havia. Era basicamente conversar com os outros, comer e dormir. Essa última parte se revelou um tanto problemática nessa primeira noite: nossa cama ficava na parte da frente da estrutura que liga os dois cascos do catamarã. A grande qualidade do catamarã é que ele não 'rola', mas descobrimos que aquela 'ponte' que liga os cascos é um excelente lugar para as ondas se encaixarem e explodirem contra a fibra de vidro. Havia momentos em que tínhamos a impressão que a pancada levantava o colchão!


E para completar começou a chover durante a noite, o que primeiro nos acordou com toda a atividade de recolher velas e depois nos deixou com um calor miserável, pois tivemos que fechar todas as escotilhas da cabine.

Ah, mas não podemos esquecer o lindo por-do-sol e a lua maravilhosa que tivemos nesse dia! Olhar e fotografar esses fenômenos foram momentos muito bonitos do dia.
16/05/2011 - Segunda-feira: Mar do Caribe

Bem, uma hora a noite acabou, e começou o mais longo dos três dias dessa viagem: pouco para fazer, num barco onde dar dez passos não é fácil e em condições que impedem que esses passos sejam mais que três de cada vez - é a distância para se tropeçar em algo ou alguém.
Mas mesmo assim foi um dia com momentos bonitos: a cor do mar do Caribe é algo de espetacular - agora sabemos de onde vem o nome da cor azul marinho. Em algum lugar do trajeto Roland parou o barco para o pessoal que quisesse nadar um pouco, e mais uma vez o por do sol foi maravilhoso.

E a noite foi melhor, inclusive o mar estava muito calmo. Mas as benditas ondas batendo no catamarã sempre tornarão a noite intranquila para quem estiver dormindo lá na frente.
17/05/2011 - Terça-feira: Arquipélago de San Blas

Acordamos muito cedo, ainda com o sol nascendo, devido a dois eventos: os motores pararam - que silêncio! - e a âncora foi baixada - o motor ficava diretamente por cima de nossas cabeças quando deitados na cama - que zoiera!!!
Isso era indicação de que havíamos chegado a San Blas, e tratamos de ajoelhar na cama e esticar os pescoços para olhar pelas escotilhas por cima da cama. Ainda nem dava para ver direito, mas a silhueta daquela ilha recortada pelo sol nascente foi a primeira recompensa pelas quarenta horas anteriores.

San Blas completou essa semana: em menos de sete dias vimos dois lugares simplesmente maravilhosos: Cartagena e essas ilhas. Da mesma forma que Cartagena, é difícil descrever ou fotografar toda a beleza.
Roland ancorou o barco bem no meio de duas ilhas, uma delas com uma praia branquinha em toda a volta e a outra mais selvagem, mas era lá que se encontravam os recifes de coral e os peixes mais interessantes.
Depois do café todo mundo catou pés de pato e snorkel e saiu para a água. Nós fomos primeiro até a ilha, fazer algo que nos faltava muito: saímos caminhando e demos a volta toda na ilha - nenhuma proeza, pois como em grande número das ilhas de San Blas, essa volta leva no máximo uns vinte minutos.

Voltamos para a água e fomos 'passear' em torno do barco para ver o que nos reservava o fundo do mar. A profundidade é pequena, em alguns lugares é até necessário tomar cuidado para não se machucar no coral quase à flor da água.
Derrick (um dos canadenses de moto) documentou com sua câmera à prova d'água - colocamos uma amostra aqui.

Um momento marcante por mostrar um pouco da cultura do povo local foi quando o alemão que viajava conosco voltou nadando da ilha com um côco. O Roland deu-lhe uma senhora bronca: os Kuna, indígenas que têm total controle sobre o arquipélago, dependem muito deles para alimentação e artesanato. Ele disse ao alemão que se um Kuna visse aquele côco a bordo ele nunca mais poderia parar no arquipélago. Pode ter exagerado um pouco, mas catar côcos (praticamente a única coisa que existe lá) em San Blas é realmente proibido!

Ficamos o dia inteiro ali, apreciando a paisagem e a água. À tarde voltamos por uns instantes para a água, como que para nos despedirmos de toda aquela beleza. E o mais maravilhoso é o silêncio! Mesmo com mais de dez pessoas por perto, era perceptível a total ausência de sons - a água é quase parada, não faz ondas, pássaros são poucos e animais aparentemente inexistentes nas ilhas.
No fim da tarde, sentados no convés do barco olhando para as ilhas, procurávamos uma forma de descrever esse festival de palmeiras, e acreditamos ter encontrado algo: essas palmas, como que explodindo no topo das árvores, são os fogos de artifício da natureza!

Essa noite foi especial: silêncio absoluto, poucas vezes dormimos em algum lugar tão quieto.


18/05/2011 - Quarta-feira: Arquipélago de San Blas


Por sugestão do Roland, acatada pela maioria, demos primeiro uma parada numa ilhota bastante curiosa: ela tem exatamente uma palmeira crescendo nela. Bem, também não há espaço para muito mais, mas poderia haver algumas...

Fomos para a água mas acabamos não indo até a ilha (outros foram): havia muito coral na areia, e estava difícil acharmos um caminho confortável para chegar lá.

Essa foi só uma parada para ver algo interessante, e depois seguimos para o destino final: um atol em torno de uma ilha habitada pelos Kuna. Talvez por isso (acesso a bebidas e comida) havia pelo menos seis ou sete veleiros ancorados em torno de nós, e a maioria ficou para passar a noite.

Uma das atrações desse atol, que só tem uma entrada entre os recifes, é um veleiro que naufragou porque seu capitão tentou entrar no atol por onde não devia. Não deu para vê-lo, pois quando entramos na água para isso a correnteza estava muito forte para nos afastarmos o necessário do barco.

Essa proximidade também trouxe Kunas ao barco para vender seu artesanato: são principalmente pulseiras e bordados muito bem trabalhados. Em outras circunstâncias certamente teríamos comprado algo.

Foi um dia gostoso e que terminou com mais uma noite tranquila.


19/05/2011 - Quinta-feira: San Blas - Cartí - Cidade de Panamá

Nesse dia fomos acordados pelo motores do barco sendo acionados - o Roland queria zarpar realmente bem cedo. E logo depois eles foram reduzidos e desligados, e ouvimos um grande movimento no convés.

Cabeças para fora das escotilhas e ficamos sabendo que o barco estava encalhado! Aparentemente ele girou com a maré e esta baixou muito, e a quilha foi encontrar a areia e se enfiar nela.

A operação para desencalhar o barco durou uma boa hora, exigindo inclusive que as motos fossem desamarradas, porque elas estavam amarradas exatamente nos canos que são a parte superior da quilha, que foi levantada para soltar o barco.

Bem, menos mal que foi possível desencalhar sem maiores danos e tocamos para o litoral. A burocracia toda por ali é um tanto primitiva mas tem que ser respeitada: Jose levou o Roland com o barco inflável até Porvenir, onde ele fez os trâmites de imigração de todos os passageiros do barco.

As motos teriam que ser processadas na cidade de Panamá, nem em Porvenir, nem em Cartí há alfândega! Então por que não entrar simplesmente? Simples, para não ter problemas ao sair! E esse problemas acontecem, como vocês verão (ou lerão).
Encerrada essa etapa nos dirigimos a Cartí, onde as motos seriam desembarcadas. No caminho descobrimos que os outros passageiros desembarcariam a meio caminho: eles foram transferidos para um bote dos Kunas, que os levou rio acima até o ponto onde podiam tomar condução (pelo que entendemos veículos 4x4 que fazem esse transporte) até a cidade de Panamá. As motos e nós seguimos até o atracadouro de Cartí, onde elas foi tudo descarregado sem problemas, graças particularmente à maré que alinhou o barco quase perfeitamente com o pier - nada de subir ou descer com a moto, só empurrá-la para fora.
Finalizado o desembarque Roland levou o barco embora (foi ancorar a uns 100 metros da costa) e nós ficamos montando toda a bagagem que havia sido removida quando embarcamos. Para complicar um pouco o Derrick esqueceu sua câmera no barco e teve que ir até lá, felizmente ele conseguiu achá-la.

Também tivemos que pagar US$ 10 de uma nova taxa de 'chegada' inventada pelos Kuna - eles realmente têm domínio total sobre aquela costa, e inventam uma taxa dessas sem o menor problema. Inclusive, a estrada que tomaríamos em seguida ficou fechada por meses devido a decisões do cacique Kuna.
Bem, tudo resolvido partimos para a cidade de Panamá. A estrada de Cartí até a rodovia principal que corre ao longo do Panamá é a coisa mais doida que já vimos. Estreita, lembra a estradinha de Salta a Jujuy na Argentina, conhecida como La Cornisa. Não conhecemos nenhuma estrada tão estreita no Brasil. São quarenta quilômetros de curvas bem fechadas (poucas daquelas de '180 graus' mas mesmo assim muito fortes) agravadas por um detalhe: as ladeiras são violentíssimas!

Entra-se numa curva sem saber se na sua saída se vai descer ou subir, e quando se desce é no máximo em segunda marcha - duas vezes tive que descer em primeira!
E em diversos pontos o final da descida é um trecho (curto) em cascalho. Então mesmo tendo visibilidade é necessário segurar a moto para encarar aquele trecho, que algumas vezes começa com um belo degrau.

Nossa planilha de estatísticas de rodagem diz tudo: levamos 1h08m para percorrer 54 km., e desses, 14 km. foram na rodovia principal - a estradinha de Cartí tem 40 km.

Bem, mas chegamos bem ao entorno da cidade de Panamá. Haviam nos dito que poderíamos fazer a importação temporária das motos no aeroporto internacional, e tocamos para lá: ele fica à beira da rodovia com sinalização abundante indicando como chegar.

Encontramos a aduana e fomos informados que teríamos que realizar o procedimento no centro da cidade, e que o horário ia somente até 16h00. Ainda perguntamos se não seria possível fazer isso no terminal de carga (havíamos visto uma placa apontando para ele ao chegar ao aeroporto) mas disseram que não.

Fazer o que, né? Vamos para a cidade... Já estávamos montados na moto quando nos chamaram de volta: tentariam ver se no terminal de carga resolveriam o problema. Telefonema e nos deram um papel com o nome do escritório e da pessoa que deveríamos procurar no terminal de carga.

Que sorte!!! Tocamos para o terminal de carga - uma senhora volta ao redor do aeroporto, ele fica realmente atrás dele - e fomos atendidos pela senhora indicada pelo pessoal da aduana. Ela pegou os documentos e foi processá-los na 'casinha' onde ficava esse departamento, nós ficamos fora esperando. Um vendedor de empanadas salvou a todos de morrer de fome, e os documentos começaram a voltar, um a um.

Só faltava a documentação do Rossy quando um outro funcionário que também havia participado do processo saiu e pediu que verificássemos nossos documentos pois podia haver datas erradas. A verificação mostrou que somente o Derrick tinha esse problema - ele já devia ter saído novamente do Panamá - e os papéis dele voltaram lá para dentro. O tal funcionário ficou uns quarenta minutos trancado lá, aí saiu falando ao celular e ouvimos como ele perguntava a alguém o que fazer a respeito do problema da data. Não sabemos o que ele ficou fazendo esse tempo todo.

Continuamos esperando e quando vimos que faltava pouco tempo para escurecer pedimos desculpas aos quatro e partimos para chegar à pousada ainda com luz do dia. Pegamos uma pista expressa que depois se transforma numa ponte sobre o mar chamada Corredor Sur.
É uma senhora pista, pedagiada, que leva diretamente ao centro da cidade de Panamá. E para quem está chegando pela primeira vez à cidade reserva uma surpresa: a primeira visão da cidade é de um conjunto impressionante de edifícios altíssimos e ultra-modernos, fazendo um contraste realmente brutal com a chegada às cidades sul-americanas que visitamos até aqui.

Claro que erramos a saída para onde queríamos ir, mas perguntando umas duas ou três vezes acabamos encontrando a pousada, agradável e dirigida por um casal muito simpático.
O único problema foi, como já aconteceu em outros lugares, a confusão que as pessoas fazem com esquerda e direita: a proprietária nos fez andar um bocado procurando restaurantes porque nos disse para virar à direita onde deveríamos ter virado à esquerda.

Mas isso foi um problema menor, até foi bom andar um pouco após os quatro dias no barco e a viagem até a cidade de Panamá. Tivemos inclusive um pouco de dificuldade nessa caminhada: nossa musculatura estava completamente emperrada!

Para fechar esta página e esse trecho da viagem, queremos acrescentar alguns comentários sobre a viagem de barco: gostaríamos que ela tivesse sido mais confortável, mas receamos que havendo passageiros procurando barco todos os comandantes farão algo parecido com o que faz o Fritz: entupir o barco de gente para ganhar mais dinheiro. Portanto, o nível de conforto será sempre uma questão de sorte.

E para quem quer transportar uma moto da Colômbia para o Panamá e visitar San Blas (difícil imaginar que não se queira fazer isso) acaba sendo a solução mais fácil e também a mais barata.

E um complemento: lá para 2013 ficamos sabendo que Fritz the Cat naufragou! A história parece ser daquelas de que nunca saberemos a verdade, o que consta na Internet é isso: www.fritz-the-cat.com. Nunca fomos atrás dos detalhes...
Diários de Bordo