Beth & Heinz Klein

(Moto)viagens

Diário de bordo -  Américas 2011: Brasil / Pará - Amazonas

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04-07/04/2011 - Segunda-feira a Quinta-feira: Santarém-Manaus (Navio Liberty Star)

Fizemos questão de colocar o nome do navio no cabeçalho desse dia para que ele seja eternamente lembrado: quem ler isso fuja desse navio!!! Por conversas com diferentes passageiros ficamos com a impressão de que existem navios melhores, portanto o relato abaixo deve ser aplicado especificamente a esse navio.

Pedimos que todos os interessados, principalmente da região norte, divulguem essas informações para que o maior número possível de pessoas consiga evitar passar o que passamos.

Ah, mas vamos começar pela parte boa: é uma viagem bastante monótona, mas mesmo assim vê-se coisas muito bonitas e interessantes ao longo desse riozão, e em condições mais adequadas de conforto e higiene é uma viagem que merece ser feita.

Algumas coisas que impressionam é que em Belém (e já durante o planejamento da viagem) ficávamos comentando como é interessante que uma cidade como Macapá não tenha acesso por terra. E aí vemos, à margem do rio, casas de onde seus ocupantes só conseguem sair de barco. Eles não conseguem sequer sair de casa sem esse recurso.

E também imaginar que muita gente alí precisa de horas de deslocamento num barquinho para atender a TODAS suas necessidades: escola, mantimentos, assistência médica...

Bem, vamos aos detalhes escabrosos da viagem: a 'festa' começou quando, com minha postura germano-paulistana chamei um taxi e pedi que nos levasse ao porto às 10:00 horas da manhã, horário previsto de chegada do navio em Santarém. Um pergunta a um carregador recebeu a resposta de que ele estava atrasado e só chegaria à tarde. Voltamos ao hotel. Depois de incontáveis tentativas conseguimos falar com um dos telefones constantes no bilhete da passagem e fomos informados que ele chegaria às 17:00 horas.

Dessa vez, tomamos mais cuidado e ligamos de novo lá pelas 18:00 horas: "ah, só às 20:00 horas". Bem, tomamos o taxi nesse horário e quando chegamos ao porto o navio estava atracando, acabando de chegar.

Foi um dia completamente perdido esperando no hotel, pois com as indefinições de horário acabamos não fazendo nada.

Bem, caminhamos até o navio e tentamos achar alguma pessoa que parecesse responsável por receber passageiros que haviam pago por uma 'suite'. O máximo que conseguimos foi a Beth ficar no pier com a bagagem e eu subir e sair perguntando até achar alguém que me entregou a chave da tal 'suite'.
Carregamos nossa bagagem para cima (uma rampa de embarque bem íngreme e mais dois lances de escadas) e nos instalamos como possível num cubículo de aproximadamente 2,50 x 1,80 m. com um beliche e um nicho onde mal e mal conseguimos espremer as duas caixas de papelão e uma das bolsas de lona. Ficamos felicíssimos por ter embalado uma das caixas e uma das bolsas em plástico no aeroporto de Belém: pelo menos pudemos evitar que elas entrassem em contato direto com o chão, que além de úmido não dava a menor esperança de limpeza (chão e paredes de chapa do navio, sem nenhum revestimento).

Os beliches até tinham um tamanho razoável, mas os colchões pareciam colchões de palha já bastante usados: totalmente disformes, sem a menor possibilidade de oferecer o mínimo possível de conforto. E revestidos de plástico (como colchão de hospital) com um lençol por cima que depois de uma virada na cama corria para todos os lados e nos deixava deitados diretamente sobre o plástico. Lençol para se cobrir? Nada!!! Toalha de banho ou de rosto? Que pretensão a nossa! Nossa toalha de fleece que compramos meio sem planejar foi a salvação.
E a falta de lençol para se cobrir se mostrou crítica: nosso confortabilíssimo cubículo contava com ar condicionado (split com controle remoto, vejam a incongruência), que por absoluta falta de opção devido às dimensões do cubículo, ficava diretamente sobre o beliche. Se tentássemos manter a temperatura (e principalmente a umidade) em níveis confortáveis, o aparelho soprava o ar frio diretamente sobre o beliche superior, sem a menor possibilidade da pessoa lá em cima desviar: a saída do ar fica a menos de um metro do beliche e exatamente no mesmo nível. Claro que se pode posicionar o defletor de ar para baixo: aí o passageiro de cima é razoavelmente poupado, mas sobra para o passageiro de baixo!

Dados os problemas dimensionais (quarto muito pequeno e eu muito grande e desajeitado) durante duas noites a Beth dormiu em cima, mas na terceira noite não tive coragem de fazer isso com ela e dei um jeito de ir lá para cima. Bem, esperamos voltar a dormir num quarto decente...

Ah, claro, a suite tem banheiro. Para melhor descrevê-lo diremos que consideramos um atrevimento arriscarmos tomar banho descalços, mas acabamos fazendo isso para não levar muita água para fora com os chinelos molhados. Vaso sanitário horrível (como eles usam a água do rio, tanto o vaso como a água estão marrons, nunca se sabe o que realmente está lá dentro), uma pia ridícula com uma torneira de plástico completamente solta (para abrí-la ou fechá-la era necessária uma mão para segurar a torneira e a outra para girar o registro) e um chuveiro de água fria. Bem, pelo menos a água não é muito fria. Tudo isso em aproximadamente 1,80 x 0,90 metros.

E temos que nos dar por imensamente felizes por ter tido esse privilégio: pela descrição de outros passageiros que ficaram na área de redes, os banheiros coletivos estavam praticamente impossíveis de se usar depois de dois dias. Ah, já deve ter ficado óbvio que serviço de limpeza da cabine e do banheiro, nem pensar!

Bem, estava pago e só nos restava dar um jeito de viver com isso até quarta-feira. Na realidade esse 'pago' é o grande problema: esse 'conforto' pode ser aceitável em outras condições, mas não por R$ 500,00.

Até quarta? Bem, esse era o dia que nos haviam informado como data de chegada em Manaus. Mas o navio já chegou com doze horas de atraso em Santarém. E só saiu às 5:30 de terça, pois durante toda a noite descarregaram carga destinada a Santarém. Foram diversos caminhões de tomates e cebolas, além de outras mercadorias - o navio transporta 500 toneladas de carga.

Ah, e a moto? Nem pensar em tentar achá-la. Ela estava (e ainda está) 'estacionada' entre uma parede do navio e pilhas de caixas de tomates, servindo de varal para a roupa dos funcionários do navio. Ela foi movida do lugar onde a deixamos e não foi fixada de nenhuma forma: está sobre o cavalete e completamente solta. Não chega a ser um problema porque esse tipo de navio não joga, portando a chance dela tombar é praticamente nula.

Bem, depois de acompanhar por algumas horas a movimentação de descarga, completamente braçal e sem a mínima consideração por segurança, seja dos trabalhadores, seja da carga, fomos dormir. Claro que a barulheira da partida nos acordou de novo - a noite foi muito curta!

Aí chegamos a mais uma faceta dessa fantástica viagem: o agente que nos vendeu a passagem havia informado que as refeições seriam pagas, R$ 4,00 pelo café da manhã e R$ 8,00 para almoço e jantar. Bem, os preços reais foram R$ 5,00 e R$ 10,00 respectivamente. Por cinco reais fomos agraciados com um sanduíche de pão de leite com um pouco de margarina, um terço de fatia de queijo e um terço de fatia de presunto e uma xícara de café com leite. Claro que tomamos o máximo cuidado para não tentar descobrir a procedência do queijo e do presunto.

Pelos R$ 10,00 recebemos um prato feito, cuja qualidade era até razoável, mas que definitivamente não vale dez reais. Na quarta-feira comemos canja de galinha, que generosamente custou apenas R$ 7,00. Havia também uma lanchonete no navio, que oferecia coisas como água (300 ml.) por R$ 4,00. Vocês podem imaginar o valor do resto. Felizmente havíamos trazido para bordo quatro garrafas de 1,5 l. de água, frutas e biscoitos que nos permitiram fugir desse roubo.

O navio faz quatro paradas antes de Manaus: Óbidos, Juruti, Parintins e Itacoatiara. Em Juruti e Parintins ele ficou pelo menos três horas descarregando mais mercadoria. Resumo da história: agora são 13:00 horas de quinta-feira, e se chegarmos antes das 20:00 horas em Manaus devemos nos dar por felizes (um dia de atraso). E ainda mais felizes por estarmos trancados dentro de nossa 'suíte', sentados em duas cadeiras de plástico que conseguimos espremer aqui para dentro: para passageiros com rede há dois andares, um aberto e o outro fechado com ar condicionado. Hoje de manhã os passageiros do andar aberto (onde também fica nossa cabine) foram enxotados para o andar de baixo pois a tripulação começou a lavar o deck superior. Quando saímos da cabine pensamos que já estivéssemos chegando e pessoal já tivesse descido. Que nada, foram todos empilhados no deck de baixo. E provavelmente ainda devem agradecer comovidos por terem tido o privilégio de viajar por doze horas no salão com ar condicionado!

Conversamos com diversos passageiros, estrangeiros, brasileiros em trânsito e locais, e a irritação é unânime. A postura de todos, a começar do pessoal de limpeza e terminando com o proprietário do barco, é de que estão nos fazendo um favor em nos admitir no navio. Isso mesmo, o proprietário do barco estava a bordo. Fomos apresentados a ele em Belém, e vocês acham que ele sequer se dignou a nos cumprimentar ou falar com qualquer outro passageiro? A um dos passageiros, que pediu para dar uma saída durante uma parada para comprar cigarros, respondeu da seguinte maneira: "Isso aqui é um navio de carga, quer fazer turismo compre seu próprio barco!". Isso para alguém que pagou quase R$ 150,00 para viajar com sua própria rede e usar banheiros imundos.

Bom, é isso aí. Estamos esperando chegar suficientemente próximo de Manaus para ter sinal de celular e tentar organizar o pernoite de hoje - faremos tudo que for possível para não dormir mais uma noite aqui. E o pior é que teremos que esperar pelo descarregamento de todos aqueles tomates antes de conseguir pegar a moto.

Ah, mas também há os lados bons: curtimos de forma privilegiada o encontro das águas, pois o barco atravessa essa 'fronteira' ao sair do rio Amazonas e entrar no rio Negro.
Diários de Bordo